Helena Nazareno Maia
Publicado em 2005, por ocasião da morte do poeta e dramaturgo Wolfgang Bauer, o texto Ausgeronnen (Escorrido, nessa tradução) integra o extenso corpus de textos ensaísticos de Elfriede Jelinek. Nele, a autora – que costuma engajar nos debates contemporâneos e na vida literária austríaca por meio de seu site – reflete sobre o modo como Wolfgang Bauer desafiara os moldes do teatro dramático com seu hiper-realismo e, com isso, também a própria realidade – nossas expectativas com relação a ela, poderíamos dizer. Para Jelinek, Bauer fora um dos maiores escritores de sua geração, um poeta maior que, no entanto, não era mais tão encenado nos palcos de língua alemã – talvez, ela avulta, justamente pelo caráter provocador de sua obra. O texto, nesse sentido, atesta sua profunda admiração pelo colega de ofício e tenta explicar, à típica maneira jelinekania, como Bauer e suas personagens teriam experimentado uma relação de dupla determinação e como, em suas peças, que podem parecer tão concretas, um abismo se coloca.
A tradução aqui disponível convida o leitor a se perder conosco nas frases labirínticas de Jelinek, pontuadas com dúvidas, jogos de linguagem e humor, para talvez entender um pouco mais (ou talvez ainda menos?) o teatro de Bauer.
Escorrido (2005)
Wolfgang Bauer foi um autor muito sério, caso contrário não poderia ter causado um efeito tão cômico. Tudo foi muito sério para ele, sério mesmo, e aquilo que dizia, também sabia fazer. Era como se suas peças (e também seus outros textos) tivessem se transformado constantemente, mas nunca tivessem sido nada além de uma aparência. Isso significa alerta máximo: arte! Uma aparência concreta, e no caso dele isso não foi nenhum paradoxo. Ele teve, por assim dizer, domínio total da fabricação; os produtos que fabricou nunca fizeram com ele aquilo que queriam, foi ele que fez com eles o que eles queriam ter feito com ele. Ele foi mais rápido. Havia algo que parecia lhe desafiar, mas esse hiper-realismo (todas as frases das primeiras peças já tinham sido ditas na realidade, que corria ao lado das peças, rosnando e abocanhando, não, não é o contrário, não é a arte que corre ao lado da realidade, mas a realidade ao lado da arte! e, mesmo assim, essas primeiras, e tão famosas, peças foram algo de muito diferente, que se passava em um universo paralelo que não tinha nada a ver com o universo da vida) não pôde se esculpir em suas figuras, foram muito mais as figuras que o esculpiram, no sentido de que o autor era o mestre daquilo (a técnica da escrita?) que havia gerado essas figuras. Com isso, ele desafiava a realidade, de quem havia emprestado suas figuras. Um duelo injusto. A realidade só poderia sair perdendo, mas acabou levando junto Wolfgang Bauer, como vingança?, no processo de escorrer como que por um ralo. O poeta arrancou as figuras da torneira, talvez porque, para ele, a água sempre correra muito devagar, e assim que elas foram agarradas (como se pode agarrar a água? Água assim como carne? Transformar água em carne? Formar algo, que não foi feito para a forma e com ela não se conforma, algo que simplesmente escorre por água abaixo, sempre? Com ela, podemos nos lavar e não se molhar, mas as figuras de água são e, ao mesmo tempo, não são, por isso, nas peças tardias, as figuras só se aguentam em pé na cabeça do próprio poeta), ele as moldou em figuras teatrais. Só que não deu. Como já disse, aquilo que escorre, mesmo tendo vontade de ganhar forma, não pode ser moldado por ninguém, não se deixa modelar. E, mesmo assim: Essas figuras imoldáveis precisaram da presença de algum poder modelador, que foi esse poeta Wolfgang Bauer, que fez algo com elas, sobre as quais não se sabia de onde vinham e para onde iam (sim, Bauer se colocava essa questão de modo programático, mas suas figuras, conduzidas ad absurdum em si mesmas e consigo mesmas, não poderiam ser de outro modo. Nisso, penso eu, elas se assemelhavam àquelas nos romances policias de Erle Stanley Gardner, que começam inofensivos e muito concretos, mas que logo, em duas, três páginas, já não se deixam mais apreender, e também não se pode apreender mais nada deles e daquilo que os cerca, apesar disso, eles ainda são romances policiais, que, afinal, dependem de seu contexto, de sua época, de seus motivos, oportunidades e circunstâncias para darem em algo), fez algo com elas, apenas por meio da sua escrita, continuamente as desafiando – que um não pode ser nada sem outro, escrever significa desafiar – algo foi feito e é jogado de um lado para o outro, por força de um poder que ninguém conhece, a roupa suja se debate no tambor da máquina de lavar (como se a máquina precisasse da roupa suja para ser uma máquina! O que define o que aqui?), algo que subjuga um outro, mas não se sabe mais o que: as personagens o poeta ou o poeta as personagens? E não se sabe mais, porque um fez o outro emergir, não, literalmente: fez o outro, no jogar-se e ser jogado pra cima e pra baixo. Esse corresponder (não contradizer!) de um com outro exige a presença de personagens das quais se exige alguma correspondência, mas uma correspondência ao nada. Talvez essa incerteza fundamental dessa dialética da existência (o poeta não é nada sem suas personagens e elas nada sem ele) tenha feito com que os teatros, nos últimos anos, não tenham tido mais coragem de levar aos palcos esse poeta maior. Talvez por conta desse espanto diante de algo que, como “mera” escrita, estava realmente lá, tanto como fato quanto como algo imaginado? Algo que precisa escapar de todo olhar, porque foi feito para todo olhar? Não sei. Não consigo ver o teatro por dentro, meu olhar é muito superficial. Nas peças aparentemente tão concretas de Wolfgang Bauer, e também suas peças tardias são muito “concretas” em suas composições, está um abismo, que consiste no fato de que nenhum dos parâmetros dessas peças sabe para onde pode e deve ir, onde deve se fazer presente e onde não, mas também onde não deve, ele está lá, cada um desses parâmetros, isto é, tempo, lugar, ação: um abismo que eu, pessoalmente, procuro evitar, porque eu, por princípio, evito a mudança que a cada presença se presentifica (ele não a evitou, ele não evitava nada, nem mesmo a perda do Eu, na anestesia, na doença de seu coração, pelo menos é o que eu acho) e que só precisa da escrita, para determinar e fixar também e justamente essa mudança. Foi isso que Wolfgang Bauer fez. O fato foi esse, mesmo que no fim Bauer não tenha conseguido levantar, portar ou suportar o fardo.
Acesse os verbetes de Elfriede Jelinek e Wolfgang Bauer para saber mais sobre esses autores!