Dramaturgo e tradutor, Artur Kon participou da montagem de duas peças da escritora Elfriede Jelinek no Brasil, além de desenvolver atualmente uma pesquisa de doutorado sobre a obra da austríaca pela USP. Em entrevista, conversou com o Centro Austríaco sobre sua experiência com a obra de Jelinek e a importância da autora no cenário atual.
Centro Austríaco: Em poucas palavras: por que a obra da Jelinek é importante?
Artur Kon: Assumindo o risco desse tipo de avaliação, eu diria: as peças de Elfriede Jelinek constituem, provavelmente, a obra dramatúrgica mais importante do nosso tempo. Por um lado, ela continua certa tradição alemã de teatro político, que a gente aqui conhece bem por causa de um Brecht, e também do Heiner Müller; ela parte deles dois, mas cria uma forma muito dela de escrever para teatro. Isso porque, por outro lado, ela é resultado de uma outra tradição, a da literatura austríaca, com sua obsessão pelo funcionamento da linguagem, seu empenho político menos disciplinado, mais negativo, seu humor peculiar. Além disso, ela tem uma consciência rara do que significa escrever para teatro hoje: ela sabe que vivemos num momento em que o texto dramatúrgico é prescindível, o teatro já descobriu que pode ser “pós-dramático”. Ela não luta contra isso e nem abandona a tarefa de escrever para a cena, ela habita um espaço de tensão: se a cena se liberta do texto, e o texto por sua vez se liberta da cena, nem por isso eles deixam de exigir muito um do outro, de se desafiar mutuamente. Não conheço ninguém que explora essa tensão de modo tão poderoso quanto ela.(Só não sei se foram poucas palavras! Mas assim é com Jelinek…)

C.A.: Você lembra a primeira vez que entrou em contato com a obra dela? O que te impactou mais?
A.K.: A primeira vez que eu ouvi falar dela foi quando ela foi laureada com o Nobel, em 2004. Eu estava no Ensino Médio ainda, e minha professora de Literatura, com quem eu conversava bastante sobre leituras, perguntou se eu a conhecia. Eu disse que não, e ela respondeu: “Sorte a sua. É só pornografia”. Como bom adolescente, claro que só fiquei mais interessado! Mas não havia obras dela traduzidas para o português, então guardei aquele nome em alguma gaveta no fundo da memória… E por isso eu o reconheci quando encontrei várias peças dela traduzidas para o francês, numa livraria parisiense. Na época eu não entendia nada de alemão, então comprei aquelas traduções, que hoje sei que não são muito boas, mas era o que dava pra ler. E eu li, e me encantei mesmo naquelas traduções, principalmente com duas coisas, que acabam se encontrando: primeiro, o modo como ela se apropriava de uma tradição literária, por exemplo recriando as figuras da Branca de Neve ou da Bela Adormecida, em Dramas de princesas; segundo, o modo como ela se apropriava da própria linguagem literária e teatral, deformando-a de modo a criar um estranhamento, ainda que não exatamente um estranhamento brechtiano. Depois encontrei algo para ler em inglês… Até que finalmente comecei a estudar alemão para poder ler no original, e aí foi como poder ter uma segunda primeira impressão!
C.A.: Quais são os grandes desafios de tradução da obra dela para o português?
A.K.: A própria Jelinek diz que é impossível traduzir os textos dela. Porque eles são inteiramente baseados em jogos de linguagem, trocadilhos, atos (propositalmente) falhos… além do mais, há toda uma dimensão do alemão austríaco, central para o modo dela criar esses jogos, que grande parte dos tradutores de alemão pode não perceber (e eu me incluo aí!). Mas o Derrida também já falou que só se pode traduzir – no sentido forte do termo, para além de uma transposição mecânica que hoje em dia até o Google consegue fazer – um texto intraduzível; poderíamos dizer que é o intraduzível que vale a pena traduzir. Mas estou cada vez mais convencido de que, para isso dar certo, é preciso ter coragem de tomar liberdades para com o texto de partida (mas novamente é a própria autora que sugere isso!). Isto é, criar os próprios jogos de linguagem, valer-se das próprias referências. É preciso escrever em português, e português brasileiro, no nosso caso, assumindo todo o sabor e toda a história da nossa língua.
C.A.: Como foi a experiência de encenar as obras dela para o público? Como foi a recepção das obras pelo público?
A.K.: O Heiner Müller, outro dramaturgo de língua alemã muito importante, e já mais conhecido por aqui, falou sobre as peças da Jelinek: o que interessa nelas é a resistência que elas oferecem ao teatro tal como ele é hoje. Assim como esses textos são impossíveis de traduzir, eles são impossíveis de encenar, num certo sentido. E do mesmo jeito, é isso que faz valer a pena encená-los: enfrentar a absoluta dificuldade que eles representam, descobrir dentro da dramaturgia da autora uma dramaturgia nova, específica para cada encenação. Apropriar-se como ator do texto, não permitir que ele se torne um peso alienígena que impede o ator de fazer o seu trabalho. A não ser que esse peso alienígena se torne um elemento da encenação! O que geralmente acontece também! Sobre recepção é sempre muito difícil falar. Eu mencionaria apenas o caso da nossa encenação de Dramas de princesas, de 2016: muitos espectadores achavam aquilo difícil, muito distante, pouco relacionável. Mas todas as espectadoras com quem falamos diziam que era absolutamente relacionável, próximo, reconhecível! Não que elas entendessem 100% do texto, acho que isso é impossível com Jelinek, não é um texto comunicativo, não é transparente e nem pretende ser. Mas nem por isso era algo alheio.
O que interessa nas peças de Jelinek é a resistência que elas oferecem ao teatro tal como ele é hoje.
Artur Kon
C.A.: Por que ler, traduzir, encenar, assistir Jelinek hoje no Brasil?
A.K.: Eis a grande questão, e eu acho que não existe uma resposta pronta e teórica para ela. Essa resposta tem que ser construída pelas leituras, traduções, encenações. Cada uma tem que ser uma tentativa de responder essa pergunta, uma proposta de pensar as semelhanças, diferenças e possíveis pontes. Mas para não fugir totalmente da questão, também poderia dizer que a obra de Elfriede Jelinek, no enfrentamento com questões centrais do presente (a opressão das mulheres, o fascismo crescente, o capitalismo aparentemente irresistível, a derrota histórica da esquerda revolucionária), é capaz de expandir nosso vocabulário dramatúrgico… Ora, “expandir o vocabulário dramatúrgico” pode parecer algo muito pequeno, e talvez seja menor do que gostaríamos – a autora é cética em relação ao poder transformador da arte. Mas repensar o que significa uma fala (para além de um diálogo com regras previamente estabelecidas), um papel (para além de personagens individuais com predicados fixos) ou um ato (sem a ilusão da ação autônoma de indivíduos) de modo algum é sem consequências.
Artur Kon ministra, de junho a setembro de 2021, o curso Não quero teatro! em parceria com o Centro Austríaco, sobre a obra de Elfriede Jelinek e Peter Handke. Clique aqui para fazer a inscrição.
