Escorrido (2005)

Helena Nazareno Maia

Publicado em 2005, por ocasião da morte do poeta e dramaturgo Wolfgang Bauer, o texto Ausgeronnen (Escorrido, nessa tradução) integra o extenso corpus de textos ensaísticos de Elfriede Jelinek. Nele, a autora – que costuma engajar nos debates contemporâneos e na vida literária austríaca por meio de seu site – reflete sobre o modo como Wolfgang Bauer desafiara os moldes do teatro dramático com seu hiper-realismo e, com isso, também a própria realidade – nossas expectativas com relação a ela, poderíamos dizer. Para Jelinek, Bauer fora um dos maiores escritores de sua geração, um poeta maior que, no entanto, não era mais tão encenado nos palcos de língua alemã – talvez, ela avulta, justamente pelo caráter provocador de sua obra. O texto, nesse sentido, atesta sua profunda admiração pelo colega de ofício e tenta explicar, à típica maneira jelinekania, como Bauer e suas personagens teriam experimentado uma relação de dupla determinação e como, em suas peças, que podem parecer tão concretas, um abismo se coloca.  

A tradução aqui disponível convida o leitor a se perder conosco nas frases labirínticas de Jelinek, pontuadas com dúvidas, jogos de linguagem e humor, para talvez entender um pouco mais (ou talvez ainda menos?) o teatro de Bauer. 

Escorrido (2005) 

Wolfgang Bauer foi um autor muito sério, caso contrário não poderia ter causado um efeito tão cômico. Tudo foi muito sério para ele, sério mesmo, e aquilo que dizia, também sabia fazer. Era como se suas peças (e também seus outros textos) tivessem se transformado constantemente, mas nunca tivessem sido nada além de uma aparência. Isso significa alerta máximo: arte! Uma aparência concreta, e no caso dele isso não foi nenhum paradoxo. Ele teve, por assim dizer, domínio total da fabricação; os produtos que fabricou nunca fizeram com ele aquilo que queriam, foi ele que fez com eles o que eles queriam ter feito com ele. Ele foi mais rápido. Havia algo que parecia lhe desafiar, mas esse hiper-realismo (todas as frases das primeiras peças já tinham sido ditas na realidade, que corria ao lado das peças, rosnando e abocanhando, não, não é o contrário, não é a arte que corre ao lado da realidade, mas a realidade ao lado da arte! e, mesmo assim, essas primeiras, e tão famosas, peças foram algo de muito diferente, que se passava em um universo paralelo que não tinha nada a ver com o universo da vida) não pôde se esculpir em suas figuras, foram muito mais as figuras que o esculpiram, no sentido de que o autor era o mestre daquilo (a técnica da escrita?) que havia gerado essas figuras. Com isso, ele desafiava a realidade, de quem havia emprestado suas figuras. Um duelo injusto. A realidade só poderia sair perdendo, mas acabou levando junto Wolfgang Bauer, como vingança?, no processo de escorrer como que por um ralo. O poeta arrancou as figuras da torneira, talvez porque, para ele, a água sempre correra muito devagar, e assim que elas foram agarradas (como se pode agarrar a água? Água assim como carne? Transformar água em carne? Formar algo, que não foi feito para a forma e com ela não se conforma, algo que simplesmente escorre por água abaixo, sempre? Com ela, podemos nos lavar e não se molhar, mas as figuras de água são e, ao mesmo tempo, não são, por isso, nas peças tardias, as figuras só se aguentam em pé na cabeça do próprio poeta), ele as moldou em figuras teatrais. Só que não deu. Como já disse, aquilo que escorre, mesmo tendo vontade de ganhar forma, não pode ser moldado por ninguém, não se deixa modelar. E, mesmo assim: Essas figuras imoldáveis precisaram da presença de algum poder modelador, que foi esse poeta Wolfgang Bauer, que fez algo com elas, sobre as quais não se sabia de onde vinham e para onde iam (sim, Bauer se colocava essa questão de modo programático, mas suas figuras, conduzidas ad absurdum em si mesmas e consigo mesmas, não poderiam ser de outro modo. Nisso, penso eu, elas se assemelhavam àquelas nos romances policias de Erle Stanley Gardner, que começam inofensivos e muito concretos, mas que logo, em duas, três páginas, já não se deixam mais apreender, e também não se pode apreender mais nada deles e daquilo que os cerca, apesar disso, eles ainda são romances policiais, que, afinal, dependem de seu contexto, de sua época, de seus motivos, oportunidades e circunstâncias para darem em algo), fez algo com elas, apenas por meio da sua escrita, continuamente as desafiando – que um não pode ser nada sem outro, escrever significa desafiar – algo foi feito e é jogado de um lado para o outro, por força de um poder que ninguém conhece, a roupa suja se debate no tambor da máquina de lavar (como se a máquina precisasse da roupa suja para ser uma máquina! O que define o que aqui?), algo que subjuga um outro, mas não se sabe mais o que: as personagens o poeta ou o poeta as personagens? E não se sabe mais, porque um fez o outro emergir, não, literalmente: fez o outro, no jogar-se e ser jogado pra cima e pra baixo. Esse corresponder (não contradizer!) de um com outro exige a presença de personagens das quais se exige alguma correspondência, mas uma correspondência ao nada. Talvez essa incerteza fundamental dessa dialética da existência (o poeta não é nada sem suas personagens e elas nada sem ele) tenha feito com que os teatros, nos últimos anos, não tenham tido mais coragem de levar aos palcos esse poeta maior. Talvez por conta desse espanto diante de algo que, como “mera” escrita, estava realmente lá, tanto como fato quanto como algo imaginado? Algo que precisa escapar de todo olhar, porque foi feito para todo olhar? Não sei. Não consigo ver o teatro por dentro, meu olhar é muito superficial. Nas peças aparentemente tão concretas de Wolfgang Bauer, e também suas peças tardias são muito “concretas” em suas composições, está um abismo, que consiste no fato de que nenhum dos parâmetros dessas peças sabe para onde pode e deve ir, onde deve se fazer presente e onde não, mas também onde não deve, ele está lá, cada um desses parâmetros, isto é, tempo, lugar, ação: um abismo que eu, pessoalmente, procuro evitar, porque eu, por princípio, evito a mudança que a cada presença se presentifica (ele não a evitou, ele não evitava nada, nem mesmo a perda do Eu, na anestesia, na doença de seu coração, pelo menos é o que eu acho) e que só precisa da escrita, para determinar e fixar também e justamente essa mudança. Foi isso que Wolfgang Bauer fez. O fato foi esse, mesmo que no fim Bauer não tenha conseguido levantar, portar ou suportar o fardo.  

Acesse os verbetes de Elfriede Jelinek e Wolfgang Bauer para saber mais sobre esses autores!

A Caverna de Ludlam (ou: a primeira teoria da conspiração literária de Viena)

Nas primeiras décadas do século XIX, a comunidade intelectual da Áustria levava uma vida social intensa. Estar presente nos círculos sociais – sobretudo no sentido físico – era fundamental tanto para discussões artísticas, políticas e ideológicas quanto para satirizá-las. Os cafés, até hoje símbolos da vida burguesa e intelectual vienense, eram antros de poetas, pintores, atores e músicos que se engajavam politicamente. Outros, mais interessados em questões artísticas, preferiam os salões literários, onde declamavam poesia, encenavam peças teatrais e tocavam música.

Em algum ponto de 1819, um escritor e funcionário público vienense Ignaz Franz Castelli se cansou da vida típica de seus contemporâneos e resolveu reunir alguns amigos para zombar da vida dos cafés e de todo seu engajamento contrário às práticas do governo dos Habsburgos. Castelli era conhecido principalmente pela sua produção literária cômica, além de ter sido um ilustre representante de literatura pornográfica e erótica. Nem todos os seus amigos seguiam o mesmo caminho e muitos mantinham suas produções cômicas engavetadas. Dessa união de homens dispostos a rir e satirizar Viena e a burguesia local – incluindo eles próprios –, surgiu um grupo repleto de mistério, lendas e preocupações: a Ludlamshöhle (Caverna de Ludlam).

Wien Museum, Inventarnummer W 7403

O grupo não tinha absolutamente qualquer objetivo prático, fosse ele político ou artístico. O próprio nome era arbitrário: Ludlamshöhle era meramente o título de uma peça que tivera uma péssima bilheteria naquele ano. Os membros, que iam de progressistas a reacionários, mas essencialmente burgueses, se encontravam nos fundos de uma taverna. Esse ambiente era um símbolo para um dos poucos objetivos claros: se apresentarem como “anti-cafés”. Estranhamente, a Ludlamshöhle foi um sucesso e teve diversos adeptos, incluindo escritores de grande prestígio. Para entrar na sociedade, devia-se cumprir um ritual de iniciação, que consistia em uma prova de conhecimentos das áreas “história ludlamita”, “economia ludlamita” e “ciências fúteis”. Ao passar na prova, recebia-se um “nome ludlâmico”, fictício e cômico, e cantavam-se músicas do grupo. O cartão de associado era um cardápio sujo da taverna.

Apesar da total ausência de seriedade dos ludlamitas, o grupo era tão obscuro para quem estava de fora que se iniciaram em toda a cidade rumores e lendas sobre as reuniões. Temia-se um possível grupo revolucionário, caótico, contrário ao governo autoritário e censurador de Metternich. Na noite de 18 de abril de 1826, a polícia vienense classificou a sociedade como uma ameaça ao Estado, invadiu uma das reuniões, prendeu os presentes e confiscou alguns supostos documentos que “comprovavam” ideais contrários ao governo. As casas dos membros também foram

arrombadas e investigadas, os vizinhos interrogados e as “provas” levadas à polícia. Todo esse exagero intensificou os mitos sobre o Ludlamshöhle e alguns dos membros continuaram perseguidos e espionados pelas autoridades durante anos. É claro que as empreitadas investigativas não foram lá muito bem sucedidas – muitas vezes, simplesmente não havia o que achar.

Para encerrar, trago um texto satírico escrito pelo dramaturgo Franz Grillparzer (1791-1872), cujo nome ludlamita era Saphokles, o Ístrio.

Polimestre (1836)

Começarei com o mais simples: que pode ser mais simples que o Nada? Falo do Nada, o primeiro, o mais simples, o conceito primordial. E agora, atenção. O que é Nada? Para além de não ser nada, é ao mesmo tempo o negar. Tendo já conquistado a negação, continuarei operando a partir dela. Primeiro, nego o Nada: Não-Nada. Não-Nada é Algo. Vedes a semente da qual o mundo há de emergir? Mas, calma! O melhor está por vir. Sigo negando e agora maltrato o Algo. Eu o nego. Não-Algo. Não seria Não-Algo, talvez, Nada? De modo algum! O Algo não se permite, uma vez lá, ser levado embora. Algo não pode não mais ser. Mas o que é Algo? Algo é um não muito, um restrito. Portanto, se eu nego o Algo restrito, e não posso dessa forma eliminar o Algo, o que estou negando? A restrição. Não-Algo é o Algo irrestrito, o Tudo. Tudo é o Mundo. Eu, consequentemente, criei o Mundo, como Deus, a partir do Nada. Pegai-lo, ide passear nele, relaxai, reanimai. Vós tendes o Mundo, eu vos presenteio com ele.

(Tradução por Everton Bernardes)

Polymaster (1836)

Ich fange mit dem Einfachsten an: Was kann einfacher sein als Nichts. Ich sage also Nichts, der erste, einfachste, der Urbegriff. Und nun geben sie acht. Was ist Nichts? Nebstdem dass er gas nichts ist, ist es zugleich die Verneinung. Ich habe also schon die Negation erobert und operiere damit fort. Zuerst also negiere ich das Nichts: Nicht – Nichts. Nicht – Nichts ist Etwas. Sehen Sie das Samenkorn aus dem die Welt hervorgehen wird? Aber Geduld! Es soll schon besser kommen. Ich negiere weiter und maltraitiere nun das Etwas. Ich negiere es. Nicht – Etwas. Wäre Nicht – Etwas vielleicht Nichts? Keineswegs! Das Etwas lässt sich nicht wegbringen wenn es einmal da ist. Etwas kann nicht zu nichts werden. Aber was ist Etwas? Etwas ist ein nicht Vieles, ein Beschränktes. Wenn ich daher das beschränkte Etwas negier, und kann damit das Etwas nicht wegschaffen, was negiere ich denn? Die Beschränkung. Nicht – Etwas ist das unbeschränkte Etwas, das Alles. Alles ist die Welt. Ich habe somit die Welt erschaffen, wie Gott aus Nichts. Nehmt sie, geht darin spazieren, erholt euch, erquickt euch. Ihr habt die Welt, ich schenke sie euch.

Referências:

CASTELLI, Franz I. Memoiren meines Lebens. 2: Von Jahre 1814 bis zum Jahre 1830. Viena: Kober & Markgraf, 1861.

HOLZINGER, Dieter O. (org.) Franz Grillparzer – Der Zauberflöte zweiter Teil und andere Satiren. Berndorf: KRAL Verlag, 2006.

Monólogos em Maiorca

Em 1981, Thomas Bernhard se dispôs a conversar, durante alguns dias, com a jornalista Krista Fleischmann. Dessas conversas resultaram as famosas “Monólogos em Maiorca” [Monologe auf Mallorca], gravações em vídeo do escritor falando e brincando sobre a vida, a morte, o riso e a raiva, a filosofia e as vantagens de estar num país em que não se entende a língua falada pelas pessoas ao redor. Agora, a primeira parte desses monólogos estão disponíveis no Youtube com legendagem em português, elaborada por Leonardo Lamha. Quem quiser conhecer um pouco melhor o autor austríaco, conhecido pelo seu mau humor e pessimismo, não deixe de assistir, para conhecer um Thomas Bernhard brincalhão e bem à vontade e, ao mesmo tempo, irônico e crítico como os narradores de seus livros! 

Nosso evento “Literatura austríaca em foco: conhecendo autores e obras” começa amanhã, dia 24 de agosto! E você já pode aproveitar os descontos em títulos selecionados no cestão da Editora UFPR, tais como “Áustria: uma história literária” e “Ensinar Alemão no Brasil: contextos e conteúdos”. E claro, livros de Thomas Bernhard, como “O Presidente” e “Uma festa para Boris”.

E não deixe de aproveitar o código promocional AUSTRIATEMPORAL30 de 30% de desconto nas obras “Praças dos Heróis”, de Thomas Bernhard, e “O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades”, de Elfriede Jelinek, lá no site da Editora Temporal. Para aproveitar o desconto no site da Temporal, basta adicionar o código promocional ao finalizar sua compra.

A reconstrução da língua na literatura de Ilse Aichinger

Bruna Senke Marcelino

A escritora austríaca Ilse Aichinger foi um dos nomes mais importantes da literatura em língua alemã escrita após a Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro e único romance, Die größere Hoffnung (A maior esperança), foi publicado em 1948 pela Bermann-Fischer Verlag. Neste romance, Aichinger mostra a violência contra crianças judias durante a era de Hitler e o faz através da perspectiva de uma menina que é filha de mãe judia. Ela faz isso partindo da sua própria história de vida, dado que a autora, também filha de mãe judia e pai não-judeu, permaneceu em Viena como forma de proteger a mãe. Ambas, personagem e autora, tiveram a permanência na cidade marcada por um perigo constante, pela eminência da morte de entes queridos, pelo isolamento e humilhação.  

No romance ela trata sobre o medo, a ameaça e a esperança das “crianças com os avós errados”2, a escritora não precisa dizer que as crianças eram judias, ou filhas, ou netas de judeus. Para conseguir isso, a escritora utiliza uma linguagem figurada em sua narrativa. A primeira frase do romance, por exemplo, “Em torno do Cabo da Boa Esperança, o mar ia ficando escuro”3 não chega a dizer que a guerra começou, mas reconstrói essa ideia linguisticamente através da oposição entre a esperança e a escuridão que a ameaça. Deste modo, a língua, usada pela guerra para assassinato, barbárie, destruição, perseguição, encontra nos textos de Ilse, um modo possível de acessar a dura realidade que estava ainda tão recente na memória daquele povo. Aichinger tornou isso possível escrevendo a partir das vivências de uma criança, na qual o mundo da imaginação infantil se mescla com o concreto.  

Em geral, a literatura do pós-guerra tenta desenvolver uma nova forma de usar a língua alemã e foi o que Ilse Aichinger fez em seu único romance, Die größere Hoffnung.  

Quer saber mais sobre literatura austríaca? Confira a programação do nosso evento “Literatura austríaca em foco: conhecendo autores e obras” aqui e faça sua inscrição através do formulário.

Referências: 

AICHINGER, Ilse. Die größere Hoffnung. Frankfurt am Main: Fischer, 2021. 

BONACO, Paulo André Cortesão. Die größere Hoffnung, de Ilse Aichinger tradução comentada de dois capítulos. Dissertação – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2021.

Medeia, a não austríaca

Everton Bernardes 

Em 1821 estreava no Burgtheater a trilogia O Velo de Ouro [Das goldene Vließ], do dramaturgo vienense Franz Grillparzer (1791-1872). A trilogia, baseada no mito de Medeia, Jasão e os Argonautas, foi a segunda obra de inspiração greco-latina do autor. A primeira peça, O Hóspede [Der Gastfreund], tem um ato único e serve como um prólogo: os gregos, liderados por Frixo, chegam à Cólquida, terra estranha reinada por Eetes. Apesar de conceder abrigo aos gregos, Eetes ordena que Medeia, sua filha, não confie neles. São hereges, invasores. Cabe ao rei da Cólquida matá-los. Nos poucos versos da peça, o tom da trilogia já é dado: estamos diante de um conflito de poderes entre o imperialismo grego e a subalternidade colca. 

Grillparzer-Denkmal em Volksgarten, Wien, 1889; “Medea” de Rudolf Weyr

Medeia. 

Queres matar o estrangeiro, o hóspede? 

Eetes. 

Hóspede? 

Eu o convidei à minha casa? 

Dei a ele, ao entrar, pão e sal 

E lugar quente à minha mesa? 

Não ofereci a ele hospitalidade, 

Ele a tomou já nos portões! 

(v. 379-385) 

Frixo chega à Grécia em posse do velo de ouro, um artefato mágico. Ele conta aos colcos que o objeto foi concedido a ele no templo de Apolo em Delfos. Eetes está convencido de que o velo foi, na verdade, roubado, e assassina o líder dos gregos. A peça se encerra com Medeia narrando a maldição que Frixo lança à Cólquida e à família de Eetes: 

Medeia. 

Pai! Que fizeste! Mataste o amigo hóspede! 

Ai de ti! Ai de nós todos! – Ah! – 

Das névoas do submundo elevam-se 

Três cabeças, cabeças sangrentas, 

Cabelos serpentes, 

Olhos labaredas, 

Os olhos sardônicos! 

Mais alto! Mais alto! – Elas se alçam! 

Braços descarnados, tochas nas mãos, 

Tochas! – Adagas! 

Ouve! Elas abrem os lábios murchos, 

Resmungam, cantam 

Cânticos demandantes: 

Nós guardamos o juramento 

Nós executamos a maldição! 

Maldito seja o que matou o amigo hóspede! 

Maldito seja! Maldito seja mil vezes! 

Elas vêm, elas se aproximam, 

Elas me entrelaçam, 

Entrelaçam a mim, a ti, a todos nós! 

Ai de ti! 

Eetes. 

Medeia! 

Medeia. 

Ai de ti, ai de nós! 

Ai, ai! 

(Ela foge) 

Eetes. (estendendo o braço a ela) 

Medeia! Medeia! 

(v. 495-520) 

As peças seguintes, Os Argonautas e Medeia contam, de modo geral, histórias muito semelhantes às Argonáuticas de Apolônio de Rhodes e Medeia, de Eurípides. Jasão, um herói grego, invade a Cólquida para roubar o velo de ouro. A primeira interação entre ele e Medeia se dá em uma câmara escura. Medeia realiza ritos de proteção contra os invasores. Jasão, que estava escondido na câmara, golpeia a princesa da Cólquida, mas ao vê-la caída fica encantado com ela. Neste momento, há um monólogo do herói que mistura corte e ameaça: trata Medeia ao mesmo tempo como bruxa e como dama; chama-a de feiticeira e de feminino ser fraco. “Quem és, criatura ambígua”, pergunta. “Tu pareces / ao mesmo tempo bela e demoníaca, / amável, mas também abominosa” (v. 438-440). A partir do encontro entre os dois, Medeia se torna cada vez menos a poderosa feiticeira e cada vez mais a (futura) esposa de um grego. A tensão entre os dois tem como ápice uma simbologia erótica na cena em que Medeia tenta impedir que Jasão entre na caverna onde o velo de ouro está guardado, protegido por uma serpente. 

Medeia. 

Jasão! 

Jasão. 

Estou entrando! 

Medeia. 

Jasão! 

Jasão. 

Estou entrando! 

(Ele entra, os portões se fecham atrás dele) 

Medeia. (grita e desaba diante dos portões agora fechados)

(v. 1555) 

Na terceira peça, que leva o nome da princesa colca, após os dois fugirem com o velo de ouro e já com filhos, o conflito entre os gregos e os colcos – isto é, entre os gregos e os “bárbaros” – se intensifica. Jasão busca asilo em Corinto, mas para isso deve abandonar Medeia, que se tornou um peso para ele na sociedade grega. Seu objetivo é se casar com a princesa de Corinto, Creúsa, e atingir um alto posto. Medeia é banida da cidade e coloca em execução seu plano de vingança: desenterra seus pertences mágicos que havia deixado fora da cidade, usa o velo de ouro para incendiar Creúsa e o palácio, mata os próprios filhos e abandona Jasão. 

No quarto ato da peça, ela abandona o papel de esposa que havia assumido e retorna ao mundo matriarcal representado no início da trilogia. A peça se encerra com um diálogo entre Medeia e Jasão – este já expulso de Corinto por ter trazido tanto sofrimento à cidade, sendo responsabilizado pela morte de Creúsa – em que a feiticeira se mostra superior. 

Medeia. 

(…) Tu deves suportar 

A tua própria carga. Nada mais. 

Caída como tu, sobre o chão sujo, 

Pedi-te proteção em minha pátria, 

Mas tu não a me deste! Preferiste 

Levar as mãos ao prêmio, mesmo diante 

Dos protestos que fiz a ti, Jasão. 

Agora, tens aquilo que querias: 

Morte. Porém, eu parto. Para sempre. 

(v. 2326-2334) 

Se a peça se desenrola lentamente, se Medeia só reage à conduta de Jasão no fim da última peça, se só no final da trilogia temos a conclusão do conflito entre gregos e colcos, desde o início Grillparzer nos dá dicas do que pretende fazer. Para os gregos, Grillparzer empregou o iambo – especificamente o pentâmetro iâmbico, verso tradicional da dramaturgia de língua alemã. Para os colcos, no entanto, utiliza o verso livre. O resultado: uma simulação de línguas diferentes, ainda que mutuamente inteligíveis. Uma prestigiada, outra tida como selvagem. 

Os gregos estão inseridos na tradição. Configuram, assim, o status de poder. Similarmente, o verso livre confere aos colcos uma suposta barbárie. A visão que os gregos têm desse povo já se expressa na própria linguagem. Essa diferença também é sugerida ao público, pois a quebra de padrão rítmico causa incômodo. 

É justamente por isso que Medeia é o centro da trilogia – e não Jasão, como poderia se esperar de uma peça inspirada nas Argonáuticas. Medeia é a encarnação da Cólquida: é uma bruxa, uma bárbara e uma princesa. Ao chegar em terras gregas, no entanto, tenta se desvincular totalmente do seu passado colco e se tornar uma grega. Sua própria fala se torna cada vez mais próxima do “falar dos gregos”, de modo que ao final da trilogia seus versos são quase todos em pentâmetro iâmbico. Vale notar que “quase todos” aqui significa, também, que ela não poderia ser considerada uma grega, independentemente de seus esforços. Afinal, como Gora, sua ama, aponta logo que chegam a Corinto, não há solução pacífica para o conflito, ele é inerentemente violento por conta da xenofobia: “Estas terras não são para nós, / Os gregos, eles te odeiam, te matam” (v. 1192-1193). 

Quer saber mais sobre literatura austríaca? Confira a programação do nosso evento “Literatura austríaca em foco: conhecendo autores e obras” aqui e faça sua inscrição através do formulário.

Referência: 

BERNARDES, Everton M. Língua, xenofobia e barbárie: uma proposta de tradução para a trilogia “O Velo de Ouro” de Franz Grillparzer. Monografia (Bacharelado em Letras – Português e Alemão). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019. 

Literatura austríaca em foco: conhecendo autores e obras

Você sempre quis conhecer um pouco sobre a literatura austríaca? Se sim, o evento “Literatura austríaca em foco: conhecendo autores e obras” é para você.

O evento, organizado pelo Centro Austríaco com o apoio da Editora UFPR, da Editora Temporal, da Embaixada da Áustria e da Universidade Federal do Paraná, tem o intuito de apresentar algumas discussões acerca da literatura de língua alemã, assim como introduzir ao público alguns autores e obras austríacas.

Nosso evento será online e acontecerá durante os dias 24 e 25 de agosto, das 18:30 às 20:00. Para participar, é só preencher o formulário de inscrição disponível aqui.

Além do certificado de participação, os participantes terão acesso a descontos exclusivos de obras selecionadas da Editora Temporal e da Editora UFPR.

Confira a programação:

Museu Sigmund Freud

A cidade de Viena tem mais de 100 museus que ajudam a recompor, reconstruir e relembrar a sua história e a daqueles que contribuíram para fazê-la acontecer. Um dos mais antigos e visitados é o Museu de História da Arte (Kunsthistorisches Museum) que foi inaugurado em 1891. Outro, muito conhecido, é o Museu Albertina ou Casa Albertina, que integra, na sua exposição, obras não apenas de artistas vienenses como também de toda a Europa como, por exemplo,  Monet, Renoir, Cézanne, Matisse, Miró e Picasso. Um museu muito importante para as obras do modernismo é o Museu de Arte Moderna de Viena, conhecido como Mumok. Fundado em 1962, contém mais de 10 mil peças da era do modernismo não apenas vienense como também da Europa Central. 

Além dos museus que expõem obras de grandes artistas, outros tipos de espaços são buscados por turistas e valorizados pelos locais. Estamos falando do Museu de Sigmund Freud e do Museu de Viktor Frankl. 

Museu Sigmund Freud, em Viena. Foto: C.Stadler/Bwag

Personalidades vienenses conhecidas, ambos atuaram como neurologistas e viveram épocas de grande conflito na capital da Áustria. Tanto Sigmund Freud (1856-1939) como Viktor Frankl (1905-1997), viveram na época dominada pelo nazismo. Pelo anexamento da Áustria à Alemanha e por ser judeu nesse contexto, Freud, no seu último ano de vida, ficou exilado em Londres onde morreu em 1939. Já Viktor Frankl, também judeu, foi enviado junto com a sua família a alguns campos de concentração a partir de 1942. Nesse período, toda a sua família morreu, somente ele não. Muito observador durante o tempo que passou nos campos de concentração, Viktor Frankl criou uma das suas mais famosas obras intitulada “Em busca de sentido”. Observou que pessoas concentradas nos campos no período do Holocausto, que conseguiam atribuir algum sentido à vida, foram capazes de atravessar aquele momento de maneira mais significativa. Tanto Freud como Frankl foram homenageados com museus na Áustria. 

Sala de espera do consultório de Sigmund Freud, em Viena. Foto: C.Stadler/Bwag

O Museu de Freud fica no seu antigo consultório, localizado na Rua Berggasse número 19, onde atendeu seus pacientes por 47 anos. Foi fundado em 1971 e expandido em 2020. Nele são exibidos os quartos da sua família, os lugares onde ele e a sua filha mais nova, Anna Freud, atuavam e atendiam os seus pacientes, a sua biblioteca particular, objetos pessoais, manuscritos históricos e fotografias. O museu normalmente funciona de quarta-feira a domingo, das 10h às 17h. No entanto, no verão, ele abre na segunda-feira também. A exibição é comentada não apenas em alemão ou inglês como também em francês, italiano, espanhol, turco, croata e português, através do escaneamento de um QR code disponibilizado no local. Já o Museu de Viktor Frankl foi inaugurado no dia 26 de março de 2015,  data em que foi comemorado seu 110º aniversário. Ele está localizado na rua Mariannengasse 1/13, 1090 e abre na segunda, quarta e sexta-feira, das 09h às 13h. Lá, pode-se conhecer a vida e obra do neurologista e fundador da logoterapia, corrente da psicologia que estuda e se debruça sobre o sentido da vida. Esse local abrigava a III Escola de Psicoterapia de Viena e é uma iniciativa do Centro Vienense Viktor Frankl.

Ferdinand Schmutzer, Sigmund Freud, 1926.  Ruth Bohunovsky, CC BY-SA, https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/

Acesse os sites oficiais do Museu de Sigmund Freud e do Museu de Viktor Frankl para saber mais.

Gravação do evento de lançamento de “O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades”

No mês de abril, o Centro Austríaco junto com a Embaixada Austríaca e os institutos Goethe de São Paulo, Brasília e Curitiba, promoveu eventos de lançamento de O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades, de Elfriede Jelinek. 

Para quem não conseguiu comparecer ao evento, a editora Temporal disponibilizou, em seu canal do YouTube, a gravação da mesa com Bettina Hering. Dramaturgista e diretora teatral do renomado Festival de Salzburgo, Hering compartilhou com o público informações sobre Henrik Ibsen e Elfriede Jelinek e aspectos de suas obras. 

Confira o vídeo completo aqui:

O texto, traduzido por Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr. e Ruth Bohunovsky, apresenta um dos traços fundamentais da escrita de Elfriede Jelinek: a intertextualidade – principalmente com as peças Uma Casa de Bonecas e Pilares da Sociedade, de Henrik Ibsen, mas conversa também com textos de diversas áreas (como política, feminismo, cultura pop etc.)

Após o fim da peça Uma Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, Nora passa a ser uma mulher emancipada, que sai em busca da sua liberdade. Como forma de tematizar questões sociais complexas, Elfriede Jelinek retrata as diferentes estruturas de submissão da mulher na sociedade. No caso de Nora, seja pela sua condição de operária de fábrica, seja em seu novo casamento com o Cônsul Weygang – personagem que ela emprestou de outra peça de Ibsen, “Pilares da Sociedade” – ela se vê submissa diante de todas as estruturas que a reprimem – mas também contribui, contrariando suas próprias intenções no começo da peça, para que essas estruturas não se alterem.

Você ainda pode conferir o artigo Henrik Ibsen, criador de “Uma Casa de Bonecas” e outras peças, de Bettina Hering, publicado no blog da editora temporal.

O livro pode ser adquirido no site da editora temporal.

Red Bull: a gigante austríaca

De velocidades que chegam a mais de 200 km/h até estádios de futebol lotados, a gigante Red Bull não parece diminuir o ritmo quando o assunto é negócios no mundo esportivo. Nos últimos anos o nome Red Bull se tornou um sinônimo de esportes radicais e projetos extremos (um salto da estratosfera é um feito difícil de superar), porém suas empreitadas não param aí. Atualmente dona de duas equipes na Fórmula 1, oito times de futebol, e patrocinando cerca de 700 atletas em diversas áreas, o sucesso da empresa austríaca neste ramo é inegável.

Sucesso este que se mantém quando pensamos os projetos individualmente. O Red Bull Racing e seus pilotos prodigiosos Max Verstappen e Sergio Perez estão atualmente em uma temporada absolutamente dominante de GPs. No que tange o futebol a compra do Bragantino de São Paulo parece ter surtido o efeito desejado, o time, atualmente Red Bull Bragantino, saiu da série B e agora segue firme na disputa para a primeira página da série A do Brasileirão. Mais forte ainda segue o Red Bull Leipzig, oficialmente RasenBall Leipzig devido a leis alemãs referentes a patrocínios, muito próximo de encerrar a Bundesliga em terceiro lugar e garantindo seu lugar na próxima Liga dos Campeões.

Uma empresa com este tipo de sucesso, a terceira maior dos “soft drinks” e a maior dos energéticos, só poderia ter uma história de origem digna de se conhecer um pouco. Em 1982, o empresário austríaco Dietrich Mateschitz viajou para a Tailândia e se encontrou com Chaleo Yoovidhya, proprietário da T.C Pharmaceutical. Durante a visita, Mateschitz percebeu que a bebida “Krating Daeng” de Chaleo o ajudou significantemente com a fadiga causada pela diferença de fuso horário. Então em 1984, Mateschitz fundou a Red Bull GmbH em parecia com Chaleo Yoovidhya e a transformou em uma marca internacional. Os dois proprietários então repartiram a empresa em 49% para cada, com os 2% restantes ficando para o filho de Yoovidhya, porém ficou acordado que Mateschitz é que comandaria a empresa. O primeiro Red Bull viria a ser lançado em 1987 na Áustria.

Atualmente a Red Bull GmbH é sediada na cidadezinha de Fuschl am See na Áustria, perto de Salzburg. Comandada pela família Yoovidhya após a morte de Mateschitz em 2022, que lutava há anos contra uma doença.

Bolsa de pós-doutorado NOMIS

O Programa de Bolsas NOMIS no Instituto de Ciência e Tecnologia da Áustria (ISTA) oferece a pesquisadores de pós-doutorado a liberdade de trabalhar em questões na interseção de duas ou mais disciplinas científicas em um ambiente científico único, ao mesmo tempo em que oferece a segurança de orientação científica excepcional de profissionais que são referências em suas respectivas áreas. Uma proposta de projeto interdisciplinar, a ser coorientada por dois representantes de grupos de diferentes disciplinas, identifica projetos e bolsistas que demonstram grande flexibilidade, criatividade e colaboração.

Todos os campos de pesquisa apoiados pelo ISTA serão elegíveis (consulte aqui). Caso a especialização interdisciplinar específica necessária para a pesquisa proposta não esteja disponível no ISTA, um supervisor secundário externo pode ser proposto.

NOMIS e ISTA concederão duas bolsas NOMIS anualmente, após um processo de inscrição em duas etapas (incluindo entrevista).

Benefícios de uma bolsa NOMIS:

Recursos de ponta e de última geração: unidades de serviço científico, fundos de pesquisa e viagens
Liberdade para explorar conceitos de alto risco; posição totalmente financiada por três anos (salário mínimo de 60.500 EUR (bruto) anualmente)
Ambiente de pesquisa aberto, colaborativo e interdisciplinar
Capacitação para o desenvolvimento de habilidades interdisciplinares; orientação dupla
O ensino no ISTA é incentivado (mas não obrigatório), com o objetivo de criar o ambiente mais propício para a criação e transferência de conhecimento
Integridade científica e treinamento de liderança, bem como suporte ao desenvolvimento de carreira
Contato com às redes globais da ISTA e da Fundação NOMIS de pesquisadores excepcionais e pioneiros


Requisitos de elegibilidade:

No momento do recrutamento (ou seja, no prazo de 8 meses após o prazo de candidatura), os candidatos devem ter obtido o seu doutorado e, de preferência, ter adquirido a sua primeira experiência de pós-doutorado e/ou formação interdisciplinar. No entanto, o Painel de Seleção de Bolsas NOMIS também considerará candidatos excepcionalmente promissores que não se enquadrem nos critérios acima.
Idealmente, os candidatos terão experiência inicial de pós-doutorado (ou interdisciplinar significativa). No entanto, o júri de seleção do NOMIS considerará todos os candidatos pendentes.
Os candidatos devem ter uma afiliação existente a uma instituição acadêmica/de pesquisa (nota: os candidatos internos não devem ter trabalhado no ISTA por mais de 12 meses na data limite de inscrição).
Após a rodada de avaliação inicial, os candidatos com melhor classificação devem estar disponíveis para uma entrevista remota após, aproximadamente, 4 a 6 semanas do prazo de envio.
No momento do recrutamento, os candidatos aprovados já devem ter obtido seu doutorado.
Se for bem-sucedido, a bolsa NOMIS deve começar dentro de seis meses a partir da notificação.
Consulte o guia do candidato, as perguntas frequentes e o formulário de auto avaliação de ética antes de se inscrever.

Enquanto isso, envie qualquer dúvida que possa ter sobre o programa para nomis-fellowship@ista.ac.at

Mais informações aqui

Prazo de inscrição: 15 de junho de 2023