Desde o começo deste milênio, uma escritora e um escritor austríacos ganharam o Prêmio Nobel de Literatura: em 2004, foi Elfriede Jelinek quem ganhou a cobiçada condecoração “por seu fluxo musical de vozes e contra-vozes em romances e dramas que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichés da sociedade e seu poder de subjugo”. Em 2019, Peter Handke. Na ocasião, o comitê justificou a escolha com as palavras de que o autor mereceria o prêmio “por sua obra influente que explorou, com engenho linguístico, as áreas marginais e a peculiaridade da experiência humana“.
As frases citadas sobre os motivos da entrega da distinção já apontam que estamos lidando com obras bastante diversas: enquanto Jelinek está interessada, através de sua literatura, em abordar, criticar e revelar contradições da sociedade em que vivemos e tratar de seus mecanismos de poder e discriminação, a obra de Handke se dedica em grande parte a questões de âmbito mais subjetivo ou a relação entre linguagem e a nossa percepção da realidade.
Vejamos dois exemplos: num dos seus primeiros romances, As amantes [Die Liebhaberinnen], ainda sem tradução no Brasil, Jelinek trata da vida familiar, da construção de famílias e dos imaginários acerca dessa instituição no meio rural. Em vez de histórias de amor romântico com final feliz, a autora apresenta os esforços das duas protagonistas femininas para formar uma família como uma luta em que cada uma tenta eliminar as concorrentes mais fortes, mais atrativas e/ou mais ricas, para se casar com o homem que mais parece prometer uma ascensão social. A possibilidade de uma vida independentemente, também em termos econômicos, existe, mas são as próprias mulheres que optam pelo caminho do casamento para subir na vida. As mulheres, apesar de vítimas das estruturas patriarcais, contribuem assim para a manutenção dessas estruturas que as mantêm num lugar de segunda categoria. Mais que qualquer outro autor ou outra autora, Jelinek analisa e expõe fria e cruelmente o mundo das pequenas mentiras que nos contamos no dia a dia para manter em pé o nosso imaginário acerca da própria felicidade e do nosso sucesso.

Já Peter Handke, embora às vezes também se manifesta sobre questões políticos (lembrando aqui as polêmicas em que se envolveu no que diz respeito à Sérvia durante a Guerra dos Balcãs), se debruça com grande intensidade sobre questões de âmbito subjetivo e o processo de escrita literária, a relação entre realidade e palavra. Citamos aqui um trecho do texto de orelha de uma das últimas traduções de sua obra aqui no Brasil, A segunda espada – uma história de maio (Tradução de Luis S. Krausz; Estação Liberdade, 2022): “Um exercício de escrita, uma introspecção no ofício. Peter Handke permanece fiel a si mesmo numa balada ao redor de seu terreiro nos arrabaldes parisienses. É nessas cercanias que o Prêmio Nobel de 2019 consegue dar as mais longínquas escapadas reais e imaginárias. Leva em sua navegação desde operários no bar local em fim de expediente até questionamentos à família sobre o nazismo. Qualquer semelhança com os road movies de Wim Wenders em seus melhores tempos não será coincidência: um se alimenta do outro.”

A palavra “introspecção” talvez seja uma chave possível para comparar, mesmo que de modo bastante superficial, as obras de Jelinek e Handke, pois enquanto o termo é bastante útil para se referir à literatura de Handke, a de Jelinek não combina bem com esse termo, pois a escritora faz algo bem diferente, coloca o mundo, a sociedade, o patriarcado, o capitalismo, o racismo – para citar apenas alguns exemplos – na sua mira e abaixo de seu microscópio literário.
Para leitores e leitoras interessadas nas obras de Jelinek e Handke, seguem aqui ainda algumas indicações de traduções brasileiras. De Elfriede Jelinek, temos 2 romances traduzidos (A pianista, 2011, Tordesilhas, tradução de Luis S. Krausz; Desejo, 2013, Tordesilhas, tradução de Marcelo Rodinelli). Há poucas semanas, saiu também o texto teatral O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades (2023, Temporal, trad. Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr., Ruth Bohunovsky).
Já de Peter Handke, há mais traduções disponíveis. Textos em prosa: A mulher canhota & Breve carta para um longo adeus (1985, Brasiliense, trad. Lya Luft); O medo do goleiro diante o pênalti & Bem-aventurada infelicidade (1988, Brasiliense, trad. Zé Pedro Antunes); A repetição (1988, Rocco, trad. Betty Kunz); A ausência (1989, Rocco, trad. Lya Luft); História de uma infância (1990, Companhia das Letras, trad. Nicolino Simone Neto); A tarde de um escritor (1993, Rocco, Reinaldo Guarany); Don Juan – Narrado por ele mesmo (Estação Liberdade, 2003, trad. Simone Homem de Mello); A perda da imagem: ou através da Sierra dos Gredos (2009, Estação Liberdade, trad. Simone Homem de Mello); Ensaio sobre o louco por cogumelos: uma história em si (2019, Estação Liberdade, trad. Augusto Rodrigues); Ensaio sobre a jukebox (2019, Estação Liberdade, trad. Luis S. Krausz); Ensaio sobre o cansaço (2020, Estação Liberdade, trad. Simone Homem de Mello); Ensaio sobre o dia exitoso: sonho de um dia de inverno (2020, Estação Liberdade, trad. Simone Homem de Mello); A segunda espada (2022, Estação Liberdade, trad. Luis S. Krausz). Ainda temos a coletânea de textos teatrais Peças faladas (2015, Perspectiva, trad. Samir Signeu).