Everton Bernardes 

Em 1821 estreava no Burgtheater a trilogia O Velo de Ouro [Das goldene Vließ], do dramaturgo vienense Franz Grillparzer (1791-1872). A trilogia, baseada no mito de Medeia, Jasão e os Argonautas, foi a segunda obra de inspiração greco-latina do autor. A primeira peça, O Hóspede [Der Gastfreund], tem um ato único e serve como um prólogo: os gregos, liderados por Frixo, chegam à Cólquida, terra estranha reinada por Eetes. Apesar de conceder abrigo aos gregos, Eetes ordena que Medeia, sua filha, não confie neles. São hereges, invasores. Cabe ao rei da Cólquida matá-los. Nos poucos versos da peça, o tom da trilogia já é dado: estamos diante de um conflito de poderes entre o imperialismo grego e a subalternidade colca. 

Grillparzer-Denkmal em Volksgarten, Wien, 1889; “Medea” de Rudolf Weyr

Medeia. 

Queres matar o estrangeiro, o hóspede? 

Eetes. 

Hóspede? 

Eu o convidei à minha casa? 

Dei a ele, ao entrar, pão e sal 

E lugar quente à minha mesa? 

Não ofereci a ele hospitalidade, 

Ele a tomou já nos portões! 

(v. 379-385) 

Frixo chega à Grécia em posse do velo de ouro, um artefato mágico. Ele conta aos colcos que o objeto foi concedido a ele no templo de Apolo em Delfos. Eetes está convencido de que o velo foi, na verdade, roubado, e assassina o líder dos gregos. A peça se encerra com Medeia narrando a maldição que Frixo lança à Cólquida e à família de Eetes: 

Medeia. 

Pai! Que fizeste! Mataste o amigo hóspede! 

Ai de ti! Ai de nós todos! – Ah! – 

Das névoas do submundo elevam-se 

Três cabeças, cabeças sangrentas, 

Cabelos serpentes, 

Olhos labaredas, 

Os olhos sardônicos! 

Mais alto! Mais alto! – Elas se alçam! 

Braços descarnados, tochas nas mãos, 

Tochas! – Adagas! 

Ouve! Elas abrem os lábios murchos, 

Resmungam, cantam 

Cânticos demandantes: 

Nós guardamos o juramento 

Nós executamos a maldição! 

Maldito seja o que matou o amigo hóspede! 

Maldito seja! Maldito seja mil vezes! 

Elas vêm, elas se aproximam, 

Elas me entrelaçam, 

Entrelaçam a mim, a ti, a todos nós! 

Ai de ti! 

Eetes. 

Medeia! 

Medeia. 

Ai de ti, ai de nós! 

Ai, ai! 

(Ela foge) 

Eetes. (estendendo o braço a ela) 

Medeia! Medeia! 

(v. 495-520) 

As peças seguintes, Os Argonautas e Medeia contam, de modo geral, histórias muito semelhantes às Argonáuticas de Apolônio de Rhodes e Medeia, de Eurípides. Jasão, um herói grego, invade a Cólquida para roubar o velo de ouro. A primeira interação entre ele e Medeia se dá em uma câmara escura. Medeia realiza ritos de proteção contra os invasores. Jasão, que estava escondido na câmara, golpeia a princesa da Cólquida, mas ao vê-la caída fica encantado com ela. Neste momento, há um monólogo do herói que mistura corte e ameaça: trata Medeia ao mesmo tempo como bruxa e como dama; chama-a de feiticeira e de feminino ser fraco. “Quem és, criatura ambígua”, pergunta. “Tu pareces / ao mesmo tempo bela e demoníaca, / amável, mas também abominosa” (v. 438-440). A partir do encontro entre os dois, Medeia se torna cada vez menos a poderosa feiticeira e cada vez mais a (futura) esposa de um grego. A tensão entre os dois tem como ápice uma simbologia erótica na cena em que Medeia tenta impedir que Jasão entre na caverna onde o velo de ouro está guardado, protegido por uma serpente. 

Medeia. 

Jasão! 

Jasão. 

Estou entrando! 

Medeia. 

Jasão! 

Jasão. 

Estou entrando! 

(Ele entra, os portões se fecham atrás dele) 

Medeia. (grita e desaba diante dos portões agora fechados)

(v. 1555) 

Na terceira peça, que leva o nome da princesa colca, após os dois fugirem com o velo de ouro e já com filhos, o conflito entre os gregos e os colcos – isto é, entre os gregos e os “bárbaros” – se intensifica. Jasão busca asilo em Corinto, mas para isso deve abandonar Medeia, que se tornou um peso para ele na sociedade grega. Seu objetivo é se casar com a princesa de Corinto, Creúsa, e atingir um alto posto. Medeia é banida da cidade e coloca em execução seu plano de vingança: desenterra seus pertences mágicos que havia deixado fora da cidade, usa o velo de ouro para incendiar Creúsa e o palácio, mata os próprios filhos e abandona Jasão. 

No quarto ato da peça, ela abandona o papel de esposa que havia assumido e retorna ao mundo matriarcal representado no início da trilogia. A peça se encerra com um diálogo entre Medeia e Jasão – este já expulso de Corinto por ter trazido tanto sofrimento à cidade, sendo responsabilizado pela morte de Creúsa – em que a feiticeira se mostra superior. 

Medeia. 

(…) Tu deves suportar 

A tua própria carga. Nada mais. 

Caída como tu, sobre o chão sujo, 

Pedi-te proteção em minha pátria, 

Mas tu não a me deste! Preferiste 

Levar as mãos ao prêmio, mesmo diante 

Dos protestos que fiz a ti, Jasão. 

Agora, tens aquilo que querias: 

Morte. Porém, eu parto. Para sempre. 

(v. 2326-2334) 

Se a peça se desenrola lentamente, se Medeia só reage à conduta de Jasão no fim da última peça, se só no final da trilogia temos a conclusão do conflito entre gregos e colcos, desde o início Grillparzer nos dá dicas do que pretende fazer. Para os gregos, Grillparzer empregou o iambo – especificamente o pentâmetro iâmbico, verso tradicional da dramaturgia de língua alemã. Para os colcos, no entanto, utiliza o verso livre. O resultado: uma simulação de línguas diferentes, ainda que mutuamente inteligíveis. Uma prestigiada, outra tida como selvagem. 

Os gregos estão inseridos na tradição. Configuram, assim, o status de poder. Similarmente, o verso livre confere aos colcos uma suposta barbárie. A visão que os gregos têm desse povo já se expressa na própria linguagem. Essa diferença também é sugerida ao público, pois a quebra de padrão rítmico causa incômodo. 

É justamente por isso que Medeia é o centro da trilogia – e não Jasão, como poderia se esperar de uma peça inspirada nas Argonáuticas. Medeia é a encarnação da Cólquida: é uma bruxa, uma bárbara e uma princesa. Ao chegar em terras gregas, no entanto, tenta se desvincular totalmente do seu passado colco e se tornar uma grega. Sua própria fala se torna cada vez mais próxima do “falar dos gregos”, de modo que ao final da trilogia seus versos são quase todos em pentâmetro iâmbico. Vale notar que “quase todos” aqui significa, também, que ela não poderia ser considerada uma grega, independentemente de seus esforços. Afinal, como Gora, sua ama, aponta logo que chegam a Corinto, não há solução pacífica para o conflito, ele é inerentemente violento por conta da xenofobia: “Estas terras não são para nós, / Os gregos, eles te odeiam, te matam” (v. 1192-1193). 

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Referência: 

BERNARDES, Everton M. Língua, xenofobia e barbárie: uma proposta de tradução para a trilogia “O Velo de Ouro” de Franz Grillparzer. Monografia (Bacharelado em Letras – Português e Alemão). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019. 

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